Image Map

A História que se Transformou em Lição de Descaso

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Mais de 150 anos de história estão caindo aos pedaços por falta de conservação e investimentos. A vila de Paranapiacaba, na região Metropolitana de São Paulo, é o exemplo explicito do desinteresse público na manutenção de uma importante parte da história do país.

Por Diego Oliveira e Colaboração de Diego Cardoso

O lugar, um verdadeiro oásis em meio à selva de pedra. A situação: deterioração a céu aberto.  Turistas e moradores há anos reclamam a calamitosa situação de abandono e de esquecimento de um dos poucos patrimônios históricos da Grande São Paulo. O lugar, que viu passar por suas ruas e trilhos toda a riqueza do ciclo do café, hoje vive uma situação de miséria.


 Imagem 10 –  Vagão de passageiros abandonado na entrada da Vila (Imagem: Diego Oliveira)

Desde o ano passado, uma decisão da Justiça Federal colocaria um fim aos dias de decadência que vive o ambiente e os bens do Patrimônio Histórico, Cultural e Natural da Vila de Paranapiacaba. A prefeitura de Santo André, que administra a vila, está dentre as três prefeituras do Estado de São Paulo contemplados no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) Cidades Históricas, que destinará R$ 1 bilhão em recursos federais para a revitalização de monumentos históricos em todo o Brasil.

Conforme último censo, divulgado em 2011, Santo André possui 678.486 habitantes. No mesmo ano, o PIB (Produto Interno Bruto) foi de R$ 16,9 bilhões, sendo o 29º maior do país e o 10º maior entre as cidades do Estado de São Paulo. O orçamento de 2014 do município foi de R$ 3,2 bilhões. Mesmo assim, a prefeitura cita a falta de verba como empecilho para a revitalização de Paranapiacaba.

Pela decisão da justiça, a vila ferroviária receberia R$ 42,4 milhões do governo federal para restaurar parte das antigas instalações da São Paulo Railway Company. O dinheiro, proveniente do PAC - Cidades Históricas seriam destinadas à reforma de 242 imóveis do distrito histórico. Mas o que ainda se vê, um ano após a decisão judicial, é o mesmo cenário de abandono visto em anos atrás. Projetos do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), da prefeitura, e da MRS Logística, que administra atualmente as instalações férreas do local ainda não saíram do papel.

Devido ao valor histórico, natural, cultural, Paranapiacaba tem potencial para se tornar o maior polo turístico da Grande São Paulo. Mas fatores burocráticos, a falta de vontade política e de investimentos privados transforma a antiga vila inglesa e boa parte da memória ferroviária do país, em um verdadeiro exemplo de descaso público.

Paranapiacaba tem boas histórias para contar: foi lá que aconteceu, por exemplo, o primeiro jogo de futebol do Brasil, promovido por Charles Miller, considerado o pai do futebol no Brasil e que era funcionário da São Paulo Railway Company. Outra curiosidade é que no lugar está duas das três primeiras locomotivas à vapor do Brasil. O Cine Lyra é considerado um dos primeiro cinemas do país. Porém, toda essa história se degrada dia após dia pelas mãos do tempo e pouco é feito para manter vivo esse passado.

Um Pedaço da História que Agoniza

No final do século XIX, São Paulo ganhou a sua 1ª linha férrea. A Estrada de Ferro Santos-Jundiaí não só transportava pessoas ou a produção cafeeira do interior paulista para o porto de Santos, mas transportava a maior riqueza de nosso país: a vida e a história do nosso povo.
Imagem 11 – Vista da antiga estação Alto da Serra, em 1908 (Imagem: Acervo ABPF/SP)


A majestosa visão do futuro das estradas de ferro, trazida à São Paulo por Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, colocou fim ao isolamento do planalto paulista, rompendo as dificuldades de transpor a grande inclinação da Serra do Mar. Isso facilitou o transporte de mercadorias e o contato cultural e comercial com a Europa por meio do Porto de Santos. Com o trem, os paulistas ficaram mais próximos da Europa e pôde respirar os ares do futurismo e do modernismo, se tornando a vanguarda econômica e cultural do Brasil.

E em 1867 foi construído no alto da serra do mar, Há 796 metros do nível do mar, um centro operacional, técnico, administrativo e residencial para os funcionários da ferrovia inglesa que mantinham o funcionamento da estrada de ferro. Esta região, mais tarde, ficou conhecida como Paranapiacaba. De origem inglesa e ferroviária, o vilarejo surgiu como um grande acampamento de trabalhadores. Erguida com casas feitas em madeira de pinho e alvenaria em estilo inglês, a vila tem ruas cuidadosamente planejadas, harmonizando a paisagem com clima típico europeu do lugar.

Por aproximadamente 60 anos, a Estrada de Ferro Santos–Jundiaí foi vital para a expansão da economia. Calcula-se que, entre 1890 e 1930, tenham passado pelos trilhos da vila, cerca de 450 milhões de sacas de café de 60 quilos cada. No entanto, com o passar do tempo, a cafeicultura deixou de ocupar o posto de principal atividade econômica do país. A industrialização começou a florescer e o Brasil dava os primeiros passos para diversificar sua economia. Nos anos 1930, após sucessivas crises de superprodução, ocorreu um grande processo de desvalorização do café. Com isso, muitas áreas de plantio foram desativadas.

Nesse novo prisma, era inevitável que Paranapiacaba sentisse os primeiros sinais da decadência: pouco a pouco, a ferrovia e a própria vila perderam sua relevância. Fatores como as políticas públicas de favorecimento ao transporte rodoviário também contribuíram para este processo.

Em 1946, encerrou-se o período de concessão da SPR e os últimos ingleses foram embora. Máquinas, ferramentas trilhos, equipamentos e o acervo foram encampados pela União. Um ano depois já se iniciava uma alternativa ao transporte rodoviário com a inauguração da primeira pista da Rodovia Anchieta, ligando São Paulo a Santos.

No início da década de 1950, o governo brasileiro passou a investir fortemente no transporte rodoviário, em detrimento do ferroviário. Em 1957, a Rede Ferroviária Nacional – RFFSA assumiu o controle dos equipamentos e da malha ferroviária da antiga SPR. Os anos 1970 foram especialmente significativos para o processo de decadência que a Vila de Paranapiacaba experimentou com a redução da atividade cafeeira e a criação de novos sistemas tecnológicos que tornaram o sistema funicular obsoleto. Até que, em 1982, ele foi totalmente desativado.


Novos desafios para a preservação de Paranapiacaba

Foi também em 1981 que a antiga estação foi destruída por um incêndio. Dele, só se salvou o relógio fabricado pela Johnny Walker Benson, de Londres, que ainda se destaca na nova estação em meio à neblina, comum nessa região serrana. Muitas residências também foram demolidas, outras desabaram por conta da falta de manutenção ou sofreram incêndios a partir daquele ano. Naquela época, a estação ainda recebia o trem suburbano de passageiros que saía da Estação da Luz, em São Paulo, e passava por algumas cidades da região do ABC Paulista antes de chegar à vila, sua última parada.

Com a decadência do sistema ferroviário e sua privatização nos anos 1990, a malha passou ao controle da MRS Logística, que hoje opera o sistema apenas para transporte de carga. A viagem de trem entre São Paulo e Santos, que levava cerca de três horas, obrigou a população a encarar os atuais congestionamentos das rodovias do sistema Anchieta-Imigrantes.

As transformações ocorridas na vila, que conta atualmente com pouco mais de mil habitantes, provocaram debates sobre a importância da preservação ferroviária, histórica e dos ambientes naturais ao seu redor.

Em 1987, a vila e seu entorno foram tombados pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). Em 2000, tornou-se um dos núcleos da UNESCO da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Grande São Paulo. Em 2003, sua área foi tombada pelo patrimônio de Santo André (município ao qual pertence o distrito de Paranapiacaba desde 2001) e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão federal ligado ao Ministério da Cultura. Naquele mesmo ano nascia o Parque Natural Municipal das Nascentes de Paranapiacaba, uma unidade de conservação voltada à preservação da rica biodiversidade local, a pesquisas e educação ambiental.

O Ecoturismo, o turismo de aventura, o circuito cultural e a educação ambiental estão entre as novas atividades desenvolvidas na vila que envolva diretamente a participação da população local e criam novos desafios para a preservação de Paranapiacaba.

A beleza da vila já atraiu a atenção de fotógrafos, escritores e cineastas, que fizeram das paisagens de Paranapiacaba cenários para suas obras. As estações e maquinários em exposição são verdadeiras aulas de história da técnica e da engenharia nas obras de arte da construção ferroviária. Um passeio inesquecível, que faz lembrar a Inglaterra, no meio da Serra do Mar.

A vila representa um importante patrimônio cultural da presença inglesa no Brasil, da história das ferrovias e da cafeicultura. Além disso, a região mantém uma reserva de Mata Atlântica, sendo também patrimônio ambiental brasileiro.

Desde 2001, se realiza todo mês de junho o Festival de Inverno que reúne milhares de pessoas em apresentações culturais, entre elas: orquestras, grupos de jazz, MPB, blues, chorinho, rock, teatro e festival gastronômico. Porém, o festival só não é mais divulgado justamente pelos problemas de infraestrutura do lugar.

É quase que inconcebível deixar em ruínas as marcas de um passado que trouxe muito progresso para toda a nação. Passado que realmente mais racional do que o presente. O Parque das Nascentes é um exemplo do trato sustentável no manejo dos recursos hídricos. No local, se destaca a nascente Olho d'água e a estação de tratamento, que abastece a vila sem o uso de bombas, evitando assim o desperdício de energia elétrica.

O que há de louvável é a iniciativa de alguns moradores e organizações locais que doam tempo, trabalho, dinheiro e dedicação para a manutenção da vila. Vale ressaltar que em todo o mundo, há somente duas vilas ferroviárias inglesas preservadas: Paranapiacaba e Thirlmere, nos arredores de Sidney – Austrália.

Tal como Dom Quixote torna-se evidente a necessidade em lutar contra os "moinhos de vento", mas com esperança de que esta luta dê certo. Pois não é necessário que a situação chegue ao fundo do poço, para que se possam realizar os primeiros passos de um reerguimento transformador na logística, na estrutura, na história e no turismo de uma região esquecida, e ao mesmo tempo tão próxima da cidade mais rica do país.

No entanto, é necessário refletir sobre o significado de preservação histórica e cultural de uma maneira geral. Não se trata apenas de cultivar a memória de um passado distante. É preciso também avaliar de que maneira esse rico patrimônio natural e cultural a ser protegido pode dar vida digna à comunidade local, no presente e no futuro. Que a névoa e o descaso, tão presentes em presente em Paranapiacaba, não encubram aquilo que o sol tem a mostrar: um lugar onde a harmonia entre cultura, história e meio ambiente possam ser mais um orgulho para todas as pessoas.

0 comentários:

Postar um comentário